Karingana wa karingana

Fotografia Fujitsu Instax Eva no Bairro dos Pescadores na Marginal de Maputo, onde ve vêm quatro mulheres negras com roupas coloridas a vender peixe. Na Marginal de Maputo na imagem visualizamos o mar com várias embarcações que ali estão no mar.

Cheguei a Maputo num sábado de manhã. O primeiro impacto foi o cheiro. Previsível. Descobri mais tarde, depois de muito pensar, como descreveria o aroma da cidade: amêndoas doces. A minha Maputo cheira a amêndoas doces. Sabe bem andar a passear numa cidade perfumada. Protegida pela Cidade de Cimento, devo ter cuidado e não entrar sozinha na Cidade de Chapa — dizem-me.

Os aromas de Maputo nem sempre são agradáveis. Algumas esquinas da Baixa, de onde saem os chapas carregados de puzzles humanos, cheiram a urina e a peixe que não vendeu de manhã. Alguns bairros cheiram a colonialismo, a miséria e a crianças nascidas com má-sorte, que foram paridas por desventura — sem parteiras, sem ambulância — no lado errado da cidade. Algumas, muito poucas, conseguem sair desse círculo vicioso de salas de aula onde cem almas tentam aprender em três horas a ler e a escrever. Às vezes conseguem chegar à universidade, onde estudam Shakespeare e filosofia socrática e uma História Africana escrita por mãos brancas, olhos azuis e ouvidos cerrados. Um dia, estas poucas crianças que conseguirão chegar à universidade, cheias de sonhos temperados de Ubuntu, talvez mudem o curso da água pantanosa da Mafalala. Algumas, a maioria, sabe que o mais provável é que a sua vida termine quando completarem cinquenta anos de vida. Foi assim com a mãe, com a avó e a bisavó.

Alima e o Fantasma

Sentada na soleira da porta,
capulana enrolada, 
pés descalços,
Alima olha a estrada.
Fixa um ponto, lá,
do outro lado,
do lado do cimento,
do lado do tormento. 
Sentada, Alima, sente o calor que vem da chapa.
As costas ardem num dia cinzento
em que o vento
tenta afastar o seu pensamento. 
As estradas que se formam na sua cara,
ali sentada, são o mapa
da sua história-vida.
Karingana wa karingana.
Karingana.
Estradas de terra batida e pó dormente. 
Alima lembra-se como se fosse hoje
de ver o pai a atravessar a estrada-prisão,
torpe, a tropeçar, cerveja na mão. 
Alima sente como se fosse hoje,
coração despedaçado,
olhos de interrogação,
a mesma dor de quando o pai
atravessou o muro invisível de divisão.
Foi levado pelo pescoço
nos dentes do Cão-Tinhoso. 
Sentada na porta da casa
de chapa e armação de madeira,
Alima sente o vento
que a tenta limpar por dentro. 
Vê o fantasma do pai.

— Esquecer? Jamais!

Maputo, entre os dias 01 e 10 de outubro de 2022

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